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A modernidade e a Igreja católica

3.2  Catolicismo social na América Latina

Como na Europa, os círculos católicos conservadores expressaram um forte compromisso com as primeiras manifestações da “questão social”. A formação de círculos de trabalhadores, associações de socorro mútuo e cooperativas foram as primeiras ações do movimento social cristão na América Latina. A partir da década de 1870, foram fundados círculos católicos de trabalhadores em várias cidades latino-americanas. Em 1878, o padre Ramón Angel Jara e Abdon Ruiz Cifuentes promoveram a fundação do primeiro Círculo Católico dos Trabalhadores em Santiago do Chile e o modelo foi replicado em outras cidades do Chile. Também em Santiago, em 1885, foi criada a Associação de Trabalhadores São José, impulsionada pelo padre espanhol  Hilario Fernandez e pelo vigário geral da Arquidiocese de Santiago, Joaquín Larraín Gandarillas. Nesse mesmo ano, nasceu, em Montevidéu, o primeiro Círculo Católico dos Trabalhadores, por iniciativa de um grupo de leigos da Ordem Terceira Franciscana. Na Argentina, o primeiro Círculo dos Trabalhadores foi fundado em Buenos Aires, em fevereiro de 1892, pelo alemão redentorista padre Federico Grote. No México, a primeira União de Círculos Católicos de Trabalhadores, ou União Católica Operária, emergiu do Congresso Católico de 1907. Em todos os casos, os círculos de trabalhadores foram uma das propostas mais notórias para combater as consequências da pobreza e instruir os trabalhadores na doutrina social cristã.

A recepção da encíclica Rerum Novarum de Leão XIII, em maio de 1891, assumiu características diversas nas Igrejas da América Latina, em função tanto do desenvolvimento econômico e social de cada nação, quanto do grau de comprometimento da hierarquia, do clero e do laicato com a “questão social”. Sua implementação se deu primeiro na Argentina, Chile, Uruguai, Brasil e México, e mais tarde na Colômbia e em Cuba. De qualquer forma, prevaleceu o que Gerard Cholvy chamou de “interpretação minimalista” da Rerum Novarum, própria dos católicos conservadores, que consideraram excessivas algumas das propostas da encíclica ou que concluíram que ela não estava dirigida às suas respectivas sociedades. Na Argentina, a imprensa católica divulgou amplamente a encíclica, mas não houve comentários de Mons. Federico Aneiros, arcebispo de Buenos Aires. No Chile, a divulgação do documento foi acompanhada por uma carta pastoral do arcebispo de Santiago, Dom Mariano Casanova, insistindo na ameaça do desenvolvimento do socialismo e do ressentimento entre os grupos sociais. No México, no regime de Porfirio Diaz, a encíclica foi publicada e divulgada em várias regiões pelo clero e organizações católicas; os bispos mantiveram um relacionamento mais conciliador ou ambivalente com o governo. A recepção da encíclica de Leão XIII foi tardia no Uruguai; Mariano Soler, bispo de Montevidéu desde 1890, publicou, seis anos depois, a Carta Pastoral sobre a Igreja e as Questões Sociais e um volumoso ensaio complementar A questão  social ante as teorias racionalistas e o critério católico (SARANYANA, 2001, p.199-255).

4   Complexa relação da Igreja com a modernidade

4.1 As tentativas de reconciliação da Igreja com a modernidade

A partir de meados do século XIX e ao longo do século XX, houve momentos de particular intensidade nas controvérsias, entre os próprios católicos, sobre as relações da Igreja com as liberdades modernas. A ênfase dessas discussões transitou por temas políticos, sociais ou puramente teológicos; seu eixo se situaria no complexo equilíbrio entre o respeito à doutrina e ao magistério da Igreja e a necessidade de diálogo e integração na sociedade em constante mudança.

No início, a crise do catolicismo liberal, tanto na Europa como na América Latina, centrou-se nas novas propostas políticas e nas relações entre a Igreja e o Estado. Ele enfrentou os apoiantes do antigo regime e aqueles que aderiram à, depois denominada, “autonomia do temporal”; ambas posições manifestaram suas fraquezas quando se tornaram extremas (AUBERT, 1977, p.45). Este episódio motivou a primeira manifestação do chamado “catolicismo de conciliação” – um retorno às fontes e com vontade de ajustar-se aos tempos da democracia política, do liberalismo econômico e da liberdade cultural. Seria confrontado com o “catolicismo de rejeição”, que significava a aceitação, por parte de alguns setores da Igreja, de firmes posições defensivas da tradição, mesmo de fechamento (MALLIMACI, 2004, p.27-28). Nesse sentido, a publicação do Syllabus, em 1864, criaria uma confusão acentuada entre as mentes modernas, também “membros” da Igreja.

Nas duas primeiras décadas do século XX, deu-se o segundo momento de polêmica aguda, com a propriamente dita “crise modernista”, de caráter marcadamente intelectual. Seus protagonistas tentaram abrir o diálogo entre a cultura católica e as modernas correntes de pensamento no campo científico, histórico e crítico. As tentativas de relacionar fé e história, de aprofundar e comparar os ensinamentos de Jesus de Nazaré e os ensinamentos da Igreja necessitavam trabalho bem fundamentado e consistente, exigiam guias e mestres; nem sempre o conseguiram.

A nova tentativa de “reconciliação” provocou uma nova “rejeição”. Em 1907, a encíclica Pascendi, de Pio X, condenou os trabalhos de exegeses bíblicas como iniciativas anticatólicas e definiu os “modernistas” como “inimigos internos”. As consequências foram complexas: por um lado, consolidou-se a corrente fundamentalista, que passou a resistir à modernização da sociedade e a confrontar as possíveis mudanças dentro da própria Igreja, mesmo através de obras lamentáveis como La Sapinière; por outro lado, deu-se um desenvolvimento constante dos estudos bíblicos e da história das religiões – o Pontifício Instituto Bíblico de Roma, a Escola Bíblica de Jerusalém – com o acompanhamento romano, com a criação da Pontifícia Comissão Bíblica.

Um terceiro momento se manifestou, a partir do final da década de 1940, quando reapareceram o “catolicismo de conciliação” e o “catolicismo de rejeição” com base nas  renovadoras obras teológicas desenvolvidas pelos dominicanos em Le Saulchoir (Etioles-sur – Seine, França) e pelos jesuítas em Fourvière (Lyon, França). Esta Nouvelle Théologie se opôs ao intelectualismo escolástico, aprofundou o estudo dos Padres da Igreja e questionou a distância entre a teologia e a cultura moderna. Também motivou as censuras promovidas pela encíclica Humani Generis, do Papa Pio XII, em 1950, e os expurgos de Fourvière e Le Saulchoir alguns anos mais tarde. Menos de quinze anos mais tarde, vários dos teólogos censurados atuariam como peritos no Concílio Vaticano II. Jean Daniélou, SJ, Yves Congar, O.P., e Henri de Lubac, SJ, seriam nomeados cardeais.

4.2 Concilio Vaticano II e Conferências do Episcopado latino-americano

O processo de reunificação das Igrejas da América Latina recém havia começado, com a reunião da Primeira Conferência Geral do Episcopado Latino-americanos no Rio de Janeiro, em 1955 – da qual surgiria  o CELAM – quando se iniciaram os trabalhos preparatórios para o Concílio Vaticano II em 1959, impulsionado por João XXIII.

O Concílio Vaticano II representou, de acordo com Alberto Methol Ferré, a primeira superação da modernidade pela Igreja. “Para este aggiornamiento a Igreja tinha de reassumir o conjunto da modernidade, da qual se tinha defendido no processo de decomposição da antiga cristandade medieval e barroca” (METHOL e METALLI, 2006, p.64) Não sem dificuldade, a Igreja teria conseguido, no Vaticano II, responder aos desafios da Reforma protestante e do Iluminismo secularista, assumindo seus desafios e assimilando o melhor de cada um desses processos.

No entanto, o Concílio Vaticano II,  que abriria uma nova era na história da Igreja Católica, foi vivido de forma tênue pelas Igrejas latino-americanas. “As Igrejas da América Latina recriaram o Concílio, uma vez concluído” – diz Methol. De fato, ao final dos anos sessenta, “a lógica do Concílio” entrou na América Latina através da Constituição Apostólica Gaudium et Spes, de dezembro de 1965, da encíclica Populorum Progressio, de março de 1967, e da reunião da Segunda Conferência Geral do Episcopado Latino-americano em Medellín, em meados de 1968 (METHOL e METALLI, 2006, p. 62).

Três anos após o encerramento do Concílio, realizou-se a Conferência de Medellín, que causou uma mudança sem precedentes nas igrejas e nas sociedades latino-americanas. A partir da revalorização da dimensão humanista, não por isso  menos transcendente, do cristianismo, a Conferência de Medellín contribuiu para o aumento da preocupação com a justiça e para a revalorização do enfoque da política com sentido de serviço. “A preocupação não [foi] a ‘defesa da fé’, como no Rio de Janeiro, mas a radical solidariedade da Igreja com os pobres e oprimidos da América Latina e no sentido bíblico da irrupção do Deus  libertador na história” ( METHOL, 1986).

A Igreja latino-americana atravessou, na década seguinte, um processo de riscos e de valiosas definições. Os resultados da elaboração e reflexão teológica latino-americana se manifestaram na III Conferência Geral do Episcopado Latino-americano em Puebla, em 1979. Fortemente inspirada pela Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi, a Conferência de Puebla focou no tema da evangelização continental e concluiu com uma reafirmação da necessidade de conversão de toda a Igreja a uma opção preferencial pelos pobres, com vista à sua completa libertação.

4.3 O diálogo necessário com os tempos históricos

Em sua relação com as mudanças dos tempos históricos se manifesta a complexidade das definições eclesiais. A Igreja Católica é certamente una, por sua fé em Jesus Cristo, suas verdades doutrinais e seu seguimento do magistério doutrinal; a Igreja também é diferente porque deve se inserir dentro de circunstâncias históricas e culturais em constante mudança, e deve dialogar com elas.

Nesse sentido, o compromisso com a unidade e com a pluralidade envolve riscos. O olhar que se concentra exclusivamente na unidade poderia levar a atitudes fundamentalistas e à rejeição de toda manifestação de “catolicismo de conciliação”. De outro modo, o olhar que enfatiza somente a diversidade poderia cair em posições relativistas, porque a conciliação nem sempre é possível.

“Dialogar com o mundo exige ser perfeitamente bilíngues, ou seja, levar a revelação de Jesus Cristo na própria carne e conhecer as linguagens contemporâneas dos homens” (POUPARD, 2005, p.26), afirmou o cardeal Poupard, em 2004, convidando a serem fiéis à fé e ao mesmo tempo abertos e inovadores.


Autora

Susana Monreal, Universidad Católica de Uruguay. Texto original em espanhol.


5 Referências bibliográficas

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Para saber mais

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Colaborou: www.teologialatinoamericana.com

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