O “dominai a terra” do livro do Gênesis não é um convite à agressividade. Explicita-se aí, fundamentalmente, uma hierarquia de valores. A realidade criada não humana, mesmo integrando o mundo do homem, não se lhe pode equiparar. Como não seja imaginável uma existência humana na História sem um estar situado, essa realidade integra seu mundo, pois é através dela que o homem estabelece laços de comunhão com seus semelhantes, lançando pontes entre as margens do rio. Uma relação cordial com as coisas é uma expressão da existência de laços de comunhão entre os homens.
A agressividade ecológica, por conseguinte, é sempre um indício da ausência de comunhão nas relações pessoais. Se o homem destrói as coisas é porque a relação essencial com os irmãos está rompida. Em nível de antropologia, esta é a razão pela qual o rico se revela incapaz de construir pontes de fraternidade. Exatamente por isso, Jesus julga que seja muito difícil a um rico entrar no Reino dos Céus (cf. Lc 18,24-27). Não temos aqui uma ingênua retórica contra a riqueza. Só os sectários seriam capazes de semelhante postura.
A percepção de Jesus é muito mais profunda. O rico, à medida que explicita agressividade em relação aos bens, revela-se bloqueado na construção da fraternidade. Seu relacionamento com os bens está viciado na raiz porque exprime uma ruptura na hierarquia dos valores. Uma reflexão mais atenta sobre a realidade humana nos revela que no homem coexistem duas tendências opostas, em permanente conflito. Dessa tensão dialética depende a conflitividade essencial da História. De um lado, emerge uma tendência que desemboca na acumulação de bens, começando pela terra com tudo o que ela produz.
Passa-se progressivamente para a posse de bens mais sofisticados até atingir a apropriação dos meios de produção de bens. Este representa o último passo na tendência acumulativa, uma vez que não resta às demais pessoas outra alternativa senão a venda de sua força de trabalho. A esse respeito, João Paulo II, em sua encíclica Laborem Exerceras, enfatiza o princípio da prioridade do trabalho em confronto com o capital. O trabalho, diz o Papa, é sempre uma causa eficiente primária, enquanto o capital, sendo o conjunto dos meios de produção, permanece um instrumento, ou uma causa instrumental (n. 12). Em conclusão, o Papa faz uma afirmação surpreendente: tal conjunto de meios é o fruto do patrimônio histórico do trabalho humano.
Todos os meios de produção, por conseguinte, desde os mais primitivos até os mais modernos, foi o homem quem os elaborou (n. 12). A experiência do cotidiano atesta que a tendência à acumulação representa o caminho da facilidade e se revela mais espontânea. Aí está uma das indicações mais interessantes daquilo que se convencionou chamar de pecado original: uma desordem estrutural que torna o pecado extraordinariamente saboroso e que faz da Graça, apesar de seus atributos de plenitude e beleza, algo difícil e pouco gratificante.
De outro lado, em oposição à tendência acumulativa, há uma tendência que também se enraíza na profundidade do homem e que se exprime na partilha dos bens. Aqui igualmente, como no caso da tendência à acumulação, há um compromisso prévio com a tarefa de fazer comunhão. Quem faz da fraternidade e da comunhão a grande paixão de sua vida, aquela que dá razão a todo o seu existir, vivencia, em referência às coisas, uma relação de cordialidade e de partilha. A antropologia nos mostra hoje como seja profunda a percepção de Jesus quando define o caminho do reino como uma porta estreita (Lc 13,24).
Daí porque sejam poucos os que se sintam impulsionados a nela entrar. Pôr em comum, numa generosidade sem preconceitos e sem interesses, aquilo que é fruto de nosso trabalho: eis aí o grande desafio que é lançado ao homem. Mas é justamente por se tratar de um valor difícil e que, excetuando grupos restritos, não é assumido pela maioria dos homens, que ele se apresenta um pouco como um nadar contra a corrente.
O ideal seria que todos os homens chegassem à partilha a partir de uma profunda conversão. Mas, se quisermos ser realistas, teremos que chegar à conclusão de que é impossível isso em termos de macrossociedade. O homem que efetivamente partilha sempre será minoritário. Em razão disso, uma conclusão se impõe: em referência à massa humana, que envolve todas as estratificações sociais, a partilha não é pensável sem que se acione um conjunto de medidas coercitivas. Em outras palavras, faz-se necessária uma legislação que imponha limites à acumulação e crie condições históricas para uma efetiva partilha de bens. O convite à partilha é dirigido a todos, mas nem a todos é concedido compreendê-lo e vivenciá-lo em sua radicalidade.
Os grupos minoritários que, por graça de Deus e numa dimensão de serviço, levam o Reino até as últimas consequências, não se podem valer dessa experiência de profundidade para criar privilégios. Sua função é a de ser testemunhas vivas que atuam como fermento na massa: algo que leveda, mas que nem sequer se vê. Cabe aqui uma observação marginal seria ainda cristã uma comunidade eclesial que ocupasse manchetes, estivesse na crista da onda e alardeasse aos quatro ventos o bem que faz? “Por isso, quando deres uma esmola, não te ponhas a trombetear em público, como fazem os hipócritas nas sinagogas e nas ruas, com o propósito de serem elogiados pelos homens” (Mt 6,2a).
2. Reino de Deus: a plenitude do humano