Na verdade, a profecia é uma profunda intuição do presente, captando-lhe a transcendência significativa. O profeta é sempre alguém mergulhado nas relações históricas descortinando, apesar de sua inevitável ambiguidade, seu momento de graça. Ele é alguém que clama, questiona, repreende. É em razão disso que ele dificilmente é compreendido, sofrendo perseguições e morte.
Na história dos povos oprimidos, que integram o Terceiro Mundo, a profecia, sem deixar de suscitar expressões individuais, assumiu uma dimensão mais ampla. É o próprio povo, mergulhado na profundidade de sua história, que se torna profético. A instância crítica surge das bases. Este parece ser o sentido da afirmação de Puebla: “Do coração dos vários países que formam a América Latina está subindo ao céu um clamor cada vez mais impressionante. É um grito de um povo que sofre e que reclama justiça, liberdade e respeito aos direitos fundamentais dos homens e dos povos” (n. 87).
A Igreja assume este clamor profético e o faz seu, tornando-se ela mesma profética. E isso ela o faz, não para manipulá-lo ou então esvaziá-lo de sua força, mas justamente para viabilizá-lo historicamente. Afinal, o que aí está em jogo é a vida, razão de sua existência e de sua missão. Ela pode, então, dizer que “as profundas diferenças sociais, a extrema pobreza e a violação dos direitos humanos — que ocorrem em muitas regiões — são reptos lançados à evangelização” (n. 90).
Dizíamos mais acima que seria injusto ver nisso uma postura tática, própria de quem, colocando-se numa atitude de expectador, opta pelo lado da balança onde maior é o peso e melhores as condições de sucesso e glória. Assim mesmo, forçoso é reconhecer que a Igreja nem sempre assume a profecia do povo oprimido com a seriedade de quem, numa dimensão de serviço evangélico, sabe levá-la até as últimas consequências.
Com frequência, a afirmação da força histórica dos pobres passa pelo crivo da ideologia clerical. A tão propalada sabedoria popular só é levada a sério quando as decisões do povo coincidem com as opções do clero e dos agentes de pastoral de vanguarda. Em alguns casos, não falta sequer o despudor de afirmar que o povo não amadureceu suficientemente quando a escolha de prioridades pastorais conflita com as prioridades previamente estipuladas pelo clero. Aqui a profecia cede seu lugar à demagogia.
Talvez esse seja o preço a ser pago pela formação abstrata do clero. O pobre abstrato é sempre interessante, inteligente, conscientizado, libertador. É sobre ele que se baseia, em grande parte, o discurso eclesiástico, numa linha de libertação. O bloqueio acontece frente ao pobre real que fica muito aquém deste modelo: ele está alienado, é conformista e se revela incapaz de captar a dimensão essencialmente política da fé. É em razão disso que, tantas vezes, ao se proclamar a força histórica dos pobres, é dos pobres inexistentes que se está falando.
É urgente que a Igreja, numa atitude de profunda conversão, recupere o universo significativo enquanto presença salvadora de Deus nas lutas libertadoras do homem. Ela será profética, e não demagógica, se for capaz de superar as relações de poder, posicionando-se numa linha de serviço ao pobre real e não ao pobre abstrato. Cabe-lhe ser luz, caminho. Ela é quem deve caminhar com o povo, e não o povo com ela. Sua qualificação depende essencialmente da capacidade de servir à vida em plenitude.
Por Pe. Hermilo E. Pretto
Colaborou:
Vida Pastoral
Eclesialidade