“Não foi a Igreja que se identificou com a comunidade do surfe, mas a comunidade do surfe, entre muitos outros, que se identificou com a Igreja”, diz, em entrevista à revista evangélica Igreja, o fundador da Bola de Neve Church, o pastor Luiz Rinaldo de Seixas Pereira, chamado carinhosamente de apóstolo Rina pela sua “galera”. Trata-se de grupo religioso que se caracteriza pela informalidade da liturgia — pela liberdade de culto e expressão —, manifestada pelo púlpito em forma de prancha.
Recusa o rótulo de parque temático, algo muito próprio à indústria do turismo e à cultura pós-moderna, caracterizada como mundo de simulacros — uma cultura que faz cópia da cópia sem um objeto original. Mas o próprio pastor Rinaldo propõe nova forma de ser igreja. Diz, literalmente, que “o maná de ontem serviu para ontem. A unção de ontem serviu para ontem e não pode ser reproduzida hoje, o vinho novo só pode ser deitado em odres novos”.[11]
A revista inteira, aliás, fala em técnicas de marketing, de mobiliário, de gestão eclesiástica eficiente, e a parte publicitária corresponde ao conteúdo. Sua congênere católica obedece ao mesmo esquema, no caso a revista Paróquias & Casas Religiosas, com matérias do tipo “Gestão e espiritualidade”, “Gestão de patrimônio”, “Gestão de pessoas, marketing e Igreja”, “Liderança” — ou seja, todo um vocabulário presente no mundo financeiro/empresarial.
O risco é uma visão puramente moralista, uma desqualificação imediata dessas realidades. Estas são expressão de um mimetismo que representa tentação até para as igrejas de tradição histórica assentada e consiste numa forma de se adaptar ao mundo, copiando-o. Sob esse aspecto, o mimetismo seria a face contrária do fundamentalismo, caracterizado pela recusa de qualquer violação ao depósito integral da verdade, formulada literalmente e imune a qualquer interpretação ou mudança de linguagem.
Na realidade, existe uma circunstância mais profunda: é a absorção, pela mensagem religiosa, do espírito da mercadoria. Não se trata apenas da adoção de técnicas do mercado para tornar a religião atraente; trata-se, sobretudo, de tornar o mundo religioso o da mercadoria pura e simples, que “se vende” de acordo com leis que comandam esse universo.
O mesmo sucede do lado da mercadoria, que utiliza a religião. Certa propaganda antiga de uma cerveja é extremamente significativa: a cerveja borbulhava nas bordas de um copo, cuja circularidade lembrava uma hóstia, e se fazia o convite: “Lave a alma”. Dentro se convidava: “Seja um dos nossos frequentadores” (contracapa); “Santa Cerva. O milagre da multiplicação; compareça religiosamente”. Ao abrir o fôlder, o fundo azul-escuro punha em destaque o copo de cerveja por inteiro, com uma auréola e o cumprimento da promessa: “Chegou Santa Cerva. O paraíso da cerveja”. A mesma imagem que abria o fôlder estava na página final: um copo de cerveja aureolado com a mensagem “Santa Cerva”.[13]
A mensagem do consumo não só utiliza a religião, mas constitui-se como religião. A mensagem religiosa, por sua vez, repete o mesmo esquema, transformando-se num produto que circula entre tantos outros. Ambas se traduzem num universo de imagens que se repetem indefinidamente — uma copiando a outra — sem um referencial fundador.
Não é só a religião que entra nesse processo. O mesmo ocorre com a arte. Talvez poucos se lembrem da peça publicitária de uma grife francesa de roupas que fez uma paródia da Santa Ceia, de Leonardo da Vinci. Nela 11 mulheres vestidas com a roupa da marca ocupam o lugar dos apóstolos. Ao lado direito de Jesus (que seria o de João) está o único homem, de torso nu e de costas, namorando uma das modelos. O mesmo ocorre com os esportes, já totalmente mercantilizados. A revista Vogue-Homem, dirigida ao público de alta renda, comenta “uma seita chamada futebol”.
Essa imbricação de mundos, essa perda de contornos verificadas no cotidiano da vida humana, cuja subjetividade é trabalhada por imagens que se sucedem em ritmo vertiginoso no tempo e no espaço, talvez forneçam uma explicação para o fato de que “Nossa Senhora ganha adeptos até entre evangélicos”, conforme chamada de capa de Época, revista semanal de ampla circulação. Trata-se de um universo onde tudo cabe.
Pode-se buscar nova explicação. A rejeição de imagens era uma das marcas dos evangélicos. Mas pesquisas mostravam casos isolados de manutenção de costumes e rituais católicos entre evangélicos convertidos. Com efeito, trata-se de um fundo cultural enraizado, que não desaparece. Latente, mostra-se, se não em público, ao menos em âmbito privado. Olhando um pouco mais profundamente, pode-se perceber que o evangélico, ao lutar contra as imagens, luta contra si mesmo, contra a imagem que o habita.
Bosi constata nos fundamentos da cultura brasileira um materialismo animista. A necessidade de tocar o santo, o fato de vê-lo não como simples imagem, mas como um “poder” vivo e milagroso, mostram a realidade dessa característica. Bosi vai ainda além, quando vê na inventividade dos pobres, na sua luta pela sobrevivência, uma sabedoria empírica. Não é um mundo “desencantado”, um mundo dominado pela racionalidade própria do capitalismo:
Há, na mente dos mais desvalidos, uma relação tácita com uma força superior (Deus, a Providência); relação que, no sincretismo religioso, se desdobra em várias entidades anímicas, dotadas de energia e intencionalidade, como os santos, os espíritos celestes, os espíritos infernais, os mortos; e assimila ao mesmo panteão os ídolos provindos da comunicação de massa ou, eventualmente, as pessoas mais prestigiadas no interior da sociedade.[14]
A palavra bíblica, por mais que ganhe contornos de fetiche na pregação, não consegue eliminar a “imagem” do santo que a cultura enraizou. É claro que se trata ainda de uma hipótese a ser comprovada com pesquisas. Por enquanto, constitui uma chave de interpretação tanto para a “luta” intermitente contra o culto às imagens quanto para sua persistência no imaginário pentecostal e mesmo no espaço reservado dos domicílios evangélicos.
5. Para concluir