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Religião, crises e transformações
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Religião, crises e transformações

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“Não foi a Igreja que se identificou com a comunidade do surfe, mas a comunidade do surfe, entre muitos outros, que se identificou com a Igreja”, diz, em entrevista à revista evangélica Igreja, o fundador da Bola de Neve Church, o pastor Luiz Rinaldo de Seixas Pereira, chamado carinhosamente de apóstolo Rina pela sua “galera”Trata-se de grupo religioso que se caracteriza pela informalidade da liturgia — pela liberdade de culto e expressão —, manifestada pelo púlpito em forma de prancha.

Recusa o rótulo de parque temático, algo muito próprio à indústria do turismo e à cultura pós-moderna, caracterizada como mundo de simulacros — uma cultura que faz cópia da cópia sem um objeto original. Mas o próprio pastor Rinaldo propõe nova forma de ser igreja. Diz, literalmente, que “o maná de ontem serviu para ontem. A unção de ontem serviu para ontem e não pode ser reproduzida hoje, o vinho novo só pode ser deitado em odres novos”.[11]

A revista inteira, aliás, fala em técnicas de marketing, de mobiliário, de gestão eclesiástica eficiente, e a parte publicitária corresponde ao conteúdo. Sua congênere católica obedece ao mesmo esquema, no caso a revista Paróquias & Casas Religiosas, com matérias do tipo “Gestão e espiritualidade”, “Gestão de patrimônio”, “Gestão de pessoas, marketing e Igreja”, “Liderança” — ou seja, todo um vocabulário presente no mundo financeiro/empresarial.

Quase trinta anos atrás, Monteiro[12] falava de religiões de clientela e do surgimento de um ecumenismo popular, que inaugurava novo tipo de instituição religiosa. Saindo do binômio clássico igreja-seita, mostrava o surgimento de agências religiosas, cuja marca era exatamente a abolição de fronteiras confessionais. O pastor, em circos de lona, ia de cidade em cidade, oferecendo seus serviços fundados em bênçãos e curas, sempre acompanhado de um staff apto a dar conta de complicações eventuais relativas a algum fiel possuído pelos espíritos (do bem ou do mal).

O risco é uma visão puramente moralista, uma desqualificação imediata dessas realidades. Estas são expressão de um mimetismo que representa tentação até para as igrejas de tradição histórica assentada e consiste numa forma de se adaptar ao mundo, copiando-o. Sob esse aspecto, o mimetismo seria a face contrária do fundamentalismo, caracterizado pela recusa de qualquer violação ao depósito integral da verdade, formulada literalmente e imune a qualquer interpretação ou mudança de linguagem.

Na realidade, existe uma circunstância mais profunda: é a absorção, pela mensagem religiosa, do espírito da mercadoria. Não se trata apenas da adoção de técnicas do mercado para tornar a religião atraente; trata-se, sobretudo, de tornar o mundo religioso o da mercadoria pura e simples, que “se vende” de acordo com leis que comandam esse universo.

O mesmo sucede do lado da mercadoria, que utiliza a religião. Certa propaganda antiga de uma cerveja é extremamente significativa: a cerveja borbulhava nas bordas de um copo, cuja circularidade lembrava uma hóstia, e se fazia o convite: “Lave a alma”. Dentro se convidava“Seja um dos nossos frequentadores” (contracapa); “Santa Cerva. O milagre da multiplicação; compareça religiosamente”. Ao abrir o fôlder, o fundo azul-escuro punha em destaque o copo de cerveja por inteiro, com uma auréola e o cumprimento da promessa“Chegou Santa Cerva. O paraíso da cerveja”. A mesma imagem que abria o fôlder estava na página final: um copo de cerveja aureolado com a mensagem “Santa Cerva”.[13]

A mensagem do consumo não só utiliza a religião, mas constitui-se como religião. A mensagem religiosa, por sua vez, repete o mesmo esquema, transformando-se num produto que circula entre tantos outros. Ambas se traduzem num universo de imagens que se repetem indefinidamente — uma copiando a outra — sem um referencial fundador.

Não é só a religião que entra nesse processo. O mesmo ocorre com a arte. Talvez poucos se lembrem da peça publicitária de uma grife francesa de roupas que fez uma paródia da Santa Ceia, de Leonardo da Vinci. Nela 11 mulheres vestidas com a roupa da marca ocupam o lugar dos apóstolos. Ao lado direito de Jesus (que seria o de João) está o único homem, de torso nu e de costas, namorando uma das modelos. O mesmo ocorre com os esportes, já totalmente mercantilizados. A revista Vogue-Homem, dirigida ao público de alta renda, comenta “uma seita chamada futebol”.

Essa imbricação de mundos, essa perda de contornos verificadas no cotidiano da vida humana, cuja subjetividade é trabalhada por imagens que se sucedem em ritmo vertiginoso no tempo e no espaço, talvez forneçam uma explicação para o fato de que “Nossa Senhora ganha adeptos até entre evangélicos”, conforme chamada de capa de Época, revista semanal de ampla circulação. Trata-se de um universo onde tudo cabe.

Pode-se buscar nova explicação. A rejeição de imagens era uma das marcas dos evangélicos. Mas pesquisas mostravam casos isolados de manutenção de costumes e rituais católicos entre evangélicos convertidos. Com efeito, trata-se de um fundo cultural enraizado, que não desaparece. Latente, mostra-se, se não em público, ao menos em âmbito privado. Olhando um pouco mais profundamente, pode-se perceber que o evangélico, ao lutar contra as imagens, luta contra si mesmo, contra a imagem que o habita.

Bosi constata nos fundamentos da cultura brasileira um materialismo animista. A necessidade de tocar o santo, o fato de vê-lo não como simples imagem, mas como um “poder” vivo e milagroso, mostram a realidade dessa característica. Bosi vai ainda além, quando vê na inventividade dos pobres, na sua luta pela sobrevivência, uma sabedoria empírica. Não é um mundo “desencantado”, um mundo dominado pela racionalidade própria do capitalismo:

Há, na mente dos mais desvalidos, uma relação tácita com uma força superior (Deus, a Providência); relação que, no sincretismo religioso, se desdobra em várias entidades anímicas, dotadas de energia e intencionalidade, como os santos, os espíritos celestes, os espíritos infernais, os mortos; e assimila ao mesmo panteão os ídolos provindos da comunicação de massa ou, eventualmente, as pessoas mais prestigiadas no interior da sociedade.[14]

A palavra bíblica, por mais que ganhe contornos de fetiche na pregação, não consegue eliminar a “imagem” do santo que a cultura enraizou. É claro que se trata ainda de uma hipótese a ser comprovada com pesquisas. Por enquanto, constitui uma chave de interpretação tanto para a “luta” intermitente contra o culto às imagens quanto para sua persistência no imaginário pentecostal e mesmo no espaço reservado dos domicílios evangélicos.

Esse dado, a forte presença da sensorialidade na relação com o invisível, pode constituir uma explicação para “a força dos santos” (chamada de capa de uma revista nacional de grande circulação), hipótese corroborada pelo exemplo do teólogo Afonso Ligório, que diz já ter encontrado evangélicos com uma imagem de Nossa Senhora Aparecida debaixo do travesseiro.

5. Para concluir

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