Excetuando casos isolados, a acusação global de que estaríamos diante de um oportunismo tático configuraria uma enorme injustiça. Numerosos foram aqueles que deram a vida ou pagaram um preço bem alto por esta opção. O martírio é um dos testemunhos mais autênticos da seriedade de uma opção. O oportunismo é sempre uma tática de sobrevivência e não um compromisso de transformação.
Frente a isso, como ousaríamos ainda afirmar que a missão da Igreja reside no testemunho significativo? Dizíamos mais acima que, teologicamente, a força dos pobres deve ser compreendida em termos de clamor, de testemunho, de anúncio, e não de eficiência. Alguém seria capaz de visualizar aí a surrada definição de que a missão da Igreja é essencialmente espiritual, definição essa que teve como consequência um espiritualismo desencarnado ou a pretensão de viver a fé sem as obras. A suspeita tem sua razão de ser principalmente porque a história da Igreja apresenta um prolongado divórcio entre a ordem dos fatos e a ordem das significações.
O ativismo transformador dos fatos e o espiritualismo desencarnado configuram dois males de uma mesma raiz: a suposição de que os fatos e as significações gozem de autonomia, configurando caminhos paralelos. Se assim fosse, cada um deles poderia ser trilhado separadamente, sem interferências. A consequência, que é realidade histórica e não mera possibilidade, é a existência de dois tipos de cristão, filhos ambos do mesmo divórcio: o cristão sagrado e o profano. O primeiro supõe que a oração e a prática sacramental sejam suficientes para resolver os graves problemas que afligem o homem. Se houvesse mais fé… o mundo seria um paraíso!
O segundo imagina que a solução dos problemas em nível socioeconômico traga libertação integral, felicidade e (por que não?) até mesmo salvação. Se houvesse mais compromisso transformador… teríamos a sociedade perfeita, a plenitude do Reino! Quando se afirma que a missão da Igreja é de ordem significativa<span style=”font-size: 12pt;”>, pressupõe-se a união indissociável entre fato e significado. Não podemos ter significações novas se não formos capazes de criar fatos novos. Situando a libertação na ordem fatual e a salvação na ordem significativa, poderíamos dizer que sem libertação não há salvação. Não haverá Graça sem relações históricas de gratuidade.
Ocorre, no entanto, como tivemos a oportunidade de assinalar mais acima, que a salvação representa o algo mais significativo além da libertação. É aí que se faz presente a Graça, espaço vital para uma autêntica experiência de Deus e para uma vida em plenitude. Ao mesmo tempo em que oferece o melhor de suas forças para uma autêntica e profunda transformação dos fatos, a Igreja testemunha na fé e na esperança uma significação de salvação que transcende a lógica dos fatos. O abandono desta perspectiva priva a Igreja de sua originalidade, tornando-a uma força histórica repetitiva e que desemboca fatalmente no clericalismo.
Se é verdade que se faz necessária a eficácia histórica para que tenhamos um mundo melhor, mais justo e fraterno, cabe à Igreja testemunhar o extraordinário valor da gratuidade através de gestos não produtivos ou lucrativos. Em outras palavras, é missão da Igreja anunciar ao mundo o evangelho da Graça. Só assim teríamos condições de sustentar que a opção pelos pobres configura um momento crucial de conversão.
3. Opção hermenêutica pelos pobres: o problema da exclusividade do anúncio
A partir de Medellín, e continuando em Puebla, a Igreja da América Latina fez uma opção preferencial pelos pobres. Em seguida a esta tomada de posição, foram e continuam sendo intermináveis as discussões, tantas vezes estéreis e sectárias, em referência à universalidade da boa-nova da salvação. Citando Isaías, Jesus inaugura sua missão dizendo que o Espírito do Senhor o ungiu para evangelizar os pobres, para proclamar a remissão aos presos, a recuperação da vista aos cegos, para restituir a liberdade aos oprimidos (cf. Lc 4,18).