Anunciar que a força está justamente onde menor é seu espaço de expressão (o mundo de pobreza e marginalização) implica uma ruptura na ordem normal do processo de transformação, pois tem seu embasamento no desequilíbrio entre o objetivo desejado e as forças históricas disponíveis. Aqui não constitui solução a insistência de que a força dos fracos é o resultado da soma das fraquezas individuais.
Eles seriam fracos quando tomados individualmente, mas fortes quando agrupados. Tal solução careceria de sentido, pois equivaleria a dizer que um grupo de pessoas doentes possa constituir uma comunidade sadia. Para que seja sensato, na perspectiva do evangelho, anunciar a força histórica dos pobres, será preciso que se modifique substancialmente a perspectiva da dinâmica de transformação.
Permanecendo na lógica dos fatos, não temos como fugir ao princípio de que os efeitos conseguidos serão sempre proporcionais às causas que os produziram. Aqui a soma de forças ganha toda a sua significação. O próprio evangelho, como temos visto mais acima, nos apresenta esta sabedoria de sobrevivência. A arregimentação popular e até mesmo o proselitismo são essenciais para quem se prefixa alterar uma situação de fato.
Os partidos políticos, as organizações sindicais, da mesma forma como todos os movimentos populares, preocupados em atuar sobre os fatos no sentido de transformá-los, desembocarão numa atitude suicida, caso pretendam prescindir da rigorosa proporção entre causas e efeitos. Impedir-lhes o proselitismo em nome da liberdade equivaleria a condená-los à inanição. As grandes mobilizações populares têm a força de alterar os rumos da história. A alteração dos fatos somente será viável através de um desencadeamento de forças onde o impulso para a mudança seja mais forte que a resistência com vistas à manutenção da situação.
A bem-aventurança dos pobres, entretanto, só é compreensível quando se opera um passo qualitativo, não no abandono dos fatos, mas na transcendência por relação aos fatos, descortinando o universo das significações. Estas nunca gozam de autonomia e nem podem reivindicar existência própria. Afinal, nem os fatos estão destituídos de significação, nem as significações podem subsistir desligadas dos fatos. As significações, quando desligadas dos fatos, transformam-se fatalmente em superestruturas ideológicas que apresentam como de direito aquilo que é simplesmente de fato.
O que ocorre é que existe uma desproporção entre a ordem fatual e a ordem significativa. Isso equivale a dizer que o homem, em suas experiências mais profundas, vive mais daquilo que ele produz. Temos aí o espaço essencial da gratuidade que é o algo mais significativo além das forças históricas que o homem desencadeia. Trata-se de uma transcendência significativa por referência aos fatos.
Um exemplo nos poderá ajudar na compreensão daquilo que estamos pretendendo mostrar: o presente que damos a uma pessoa amiga. Na ordem dos fatos, o presente tem um valor determinado, de acordo com a economia de mercado. Na ordem das significações, ele representa bem mais que o valor econômico que lhe é atribuído. Em outras palavras, o valor significativo não é proporcional ao valor econômico, mas à intensidade da amizade que ele exprime. É em razão disso que uma insignificância fatual pode ser capaz de veicular uma extraordinária densidade significativa. Éo gesto da pequena oferta da viúva que permite a Jesus afirmar: “De fato, eu vos digo que esta pobre viúva lançou mais do que todos…” (Lc 21,3).
A força histórica dos pobres reside nesta capacidade, que somente as vítimas são capazes de ter, de clamar, da profundidade da própria situação, pela necessidade de recriar as relações históricas numa perspectiva de gratuidade. De certa forma, poderíamos dizer que o próprio Pecado (em sentido objetivo) faz-se clamor de Graça. Mas para que não se perca a perspectiva da gratuidade, nunca é demais enfatizar que, teologicamente, a força não pode ser compreendida em termos de eficiência, mas de clamor, de testemunho, de anúncio. Afinal, a Graça é aquilo que se vivencia mas não se produz. Temos aí a experiência do dom, que é gratificante: por ele ninguém pode reivindicar qualquer tipo de mérito.
2. Opção pelos pobres: momento de conversão ao evangelho
Torna-se problemático, sobretudo no atual momento eclesial vivido pela Igreja da América Latina, onde tão premente se faz sentir a necessidade de transformar a realidade no emaranhado global de suas relações, situar a missão da Igreja no universo significativo. Pode-se, com razão, objetar que são os fatos que corporificam as significações, assegurando-lhes densidade histórica. A ênfase na transformação das estruturas da sociedade, que tem caracterizado os pronunciamentos e a ação da Igreja da América Latina nos últimos anos, assumindo a causa do oprimido, representa, sem dúvida, um momento decisivo de conversão.