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A salvação da pátria amada: religião e extrema direita no Brasil

Por Eliseu Wisniewski, presbítero da Congregação da Missão (padres vicentinos) Província do Sul, mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), em resenha da obra A salvação da pátria amada: religião e extrema direita no Brasil (Paulus, 2024, 312 p.), organizada por João Décio Passos e Wagner Lopes Sanchez.

O livro A salvação da pátria amada: religião e extrema direita no Brasil (Paulus, 2024, 312 p.), organizado pelos doutores em Teologia João Décio Passos e Wagner Lopes Sanchez, resulta de dois Ciclos de Debates sobre Religião e Extrema Direita no Brasil, promovidos dentro do Programa de Estudos Pós-graduados em Ciência da Religião, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), pelos professores João Décio Passos e Wagner Lopes Sanchez, responsáveis por duas disciplinas: Colóquios de Pesquisa, do doutorado, e Campo Religioso Brasileiro, do mestrado. O primeiro ciclo aconteceu em setembro de 2023, com três mesas-redondas, e tinha como temática geral “A salvação da pátria cristã”; o segundo aconteceu em março de 2024, com uma mesa-redonda sobre “Os indesejados da pátria amada”.

Conforme nos informam os organizadores (p. 7-14), o primeiro ciclo, de viés histórico-analítico, teve por objetivo compreender as relações entre religião e poder político no Brasil desde o governo de Vargas até os anos mais recentes, com a chegada da extrema direita bolsonarista. As conferências proferidas fizeram um diagnóstico da articulação das Igrejas cristãs com grupos autoritários e expuseram seus arcabouços ideológicos. Em diferentes momentos da história brasileira, as elites civil, militar e religiosa construíram projetos políticos pautados pelo obscurantismo que recorreram ao discurso religioso para autolegitimar-se.

Por sua vez as reflexões sobre “os indesejados da pátria amada” examinaram o impacto do governo de extrema direita, instalado em 2019, sobre alguns segmentos da sociedade brasileira: as mulheres, o povo negro e o público LGBT. Esse impacto se deu tanto em discursos de ódio contra os indesejados quanto na destruição de políticas públicas voltadas a atender a esses segmentos. A presente publicação recolhe as referidas reflexões em duas partes.

A primeira parte (p. 15-155), composta de seis explanações resgata a história da relação entre governos e regimes de extrema direita com suas fundamentações e apoios religiosos. Estes são os capítulos e autores:

1) A “tropicália” integralista de Plínio Salgado de autoria de Marcelo Cabral de Araújo;

2) A Igreja católica e o governo Vargas: colaboração nascida de uma identidade programática elaborada por Jorge Miguel Acosta Soares;

3) O apoio católico e protestante ao golpe civil e militar de 1964 escrita por Daniel Augusto Schmidt;

4) Integrismo: início e desdobramentos no Brasil de autoria de Ney de Souza;

5) Anos inquietantes: o processo de consolidação da direita evangélica no Brasil nas primeiras décadas do século XXI elaborado por Magali Cunha;

6) Apologética e hermenêutica bíblica fundamentalista no discurso político do Brasil contemporâneo escrito por Petterson Brey.



No fundo histórico, segundo nos mostram as reflexões acima nomeadas, encontram-se sempre crises econômicas, mãe direta das crises políticas que desautorizam os modelos instituídos e legitimam as rupturas com seus líderes divinamente autorizados. Não será necessário lembrar a relação direta e mesmo causal entre a grande crise de 1929 e os regimes autoritários europeus – fascismo e nazismo –, com seus reflexos diretos no Brasil. E foi também no rescaldo da Guerra Fria e dos dois grandes imperialismos do leste e do oeste que as ditaduras latino-americanas e de outras partes do sul do mundo encontraram solo fértil para suas promessas de salvação das nações. O inimigo chamado comunismo, ao mesmo tempo real e construído, foi o estopim que agregou religiosos e políticos em busca de uma salvação conduzida por governos autoritários.

E, nos últimos tempos, agora no sul e no norte, a extrema direita retorna com diferentes líderes que trazem de volta os velhos enredos e, no formato fantasmagórico, mais uma vez, o velho comunismo. Os ambientes virtuais das redes sociais ofereceram o chão, a linguagem e a estratégia capazes de recriar os populismos salvadores das nações ameaçadas, numa relação direta entre os líderes e seus seguidores (populismo digital). De dentro desse mundo virtual e paralelo, são ensaiados projetos e promessas, e construídos os personagens apresentados como salvadores que vão impedir a destruição da pátria, da nação e da família. Sem crise, não há salvador que possa ser construído e sustentado como necessário e legítimo. É de dentro dela que os líderes emergem, da indigência, do entusiasmo e da esperança, dizia Weber a respeito das condições para o aparecimento dos personagens carismáticos.

A segunda parte da coletânea (p. 157-296) expõe as fobias fabricadas/alimentadas para sustentar ideologicamente o projeto autoritário de poder. Foram escolhidas quatro dessas fobias construídas no contexto brasileiro recente: o racismo, sobretudo aquele de viés religioso; a misoginia; a homofobia; e a fobia aos pobres (aporofobia). Mais especificamente:

1) Fábio L. Stern aborda o tema da LGBTQIA+ ressaltando que estas “são as novas bruxas da extrema direita cristã”;

2) Claudia Regina Alexandre chama a atenção para a questão do racismo religioso e para as violências que avançam no campo religioso brasileiro e sobre as religiões afro-brasileiras;

3) Olívia Bandeira traz na sua reflexão a seguinte pergunta: Uma Igreja para as mulheres?, trabalhando a relação: Cristianismo, machismo e misoginia na sociedade brasileira e, por fim,

4) Breno Corrêa Magalhães trabalha a questão da aporofobia na reflexão intitulada: “Eu tenho horror a pobre”: do cômico às raízes da aversão ao pobre.

Essas fobias e tantas outras criadas pelos regimes autoritários revelam que toda crise possui uma relação circular com o medo. Dessa relação brota a esperança de salvação circunscrita a um ideário de “pátria amada”, segundo os ditames de receituários da extrema direita. Nesses enredos, habita o medo que se torna fobia quando contagia os indivíduos e grupos com seus monstros onipresentes. Os salvadores autoritários exercem seus poderes como oposição aos inimigos; todos se alimentam das fobias e sobre elas reforçam proporcionalmente seus poderes: maior fobia, mais poder. A fraqueza do grupo tomado pelas fobias projeta no grande líder a possibilidade de enfrentamento. O líder autoritário será sempre um líder bélico, autorizado a matar o inimigo por vias simbólicas ou físicas. A morte do inimigo se torna necessária para a vida dos eleitos: mors tua vita mea.

***

A leitura desta obra ajudará o leitor a perceber que a relação entre pátria e governos de extrema direita não é uma exclusividade brasileira, mas, ao contrário, evidencia-se nos regimes autoritários de modo geral. A origem de um governo autocrático, na maioria das vezes, tem um viés religioso, no sentido implícito e/ou explícito. A comunhão patriótica manifesta essa origem transcendente do poder como condição comum anterior a todas as construções políticas que têm como centro o indivíduo autônomo e ativo. Ela realiza em sua figura uma espécie de transcendental político que concretiza em sua unidade afetiva o que é mais fundamental, anterior e superior a todos os consensos políticos. O uso da condição patriótica pode agregar positivamente em tempos normais, assim como criar coesões autoritárias em tempos de crise.

O subtítulo deste conjunto de reflexões (religião e extrema-direita do Brasil) sugere uma relação histórica entre religião e extrema-direita no Brasil, e o título já apresenta a justificativa da relação: a salvação da pátria amada. Os governos e regimes de extrema direita que nos acompanharam ao longo da história visaram salvar a pátria ameaçada por inimigos ou forças externas e internas. A história da extrema direita no Brasil escreve o eterno retorno do fundamento religioso do poder de forma implícita e explícita, ou seja, em credos velados no poder determinante de deus na história e por meio de alianças celebradas entre as Igrejas e os governos. No transcurso do atribulado século XX, essa dinâmica mostrou-se na emergência dos regimes autoritários pelo mundo afora, com seus reflexos diretos no Brasil.

Colaborou: VIDA PASTORAL

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