Jesus: a misericórdia em movimento | Círculo Bíblico 58
O “mistério da misericórdia” revelado em Jesus nos leva a contemplar, em primeiro lugar, sua encarnação. “Sendo de condição divina, não se apegou ao ser igual a Deus, mas despojou-se, assumindo a forma de escravo e tornando-se semelhante ao ser humano” (Fl 2,6-7). Em radical solidariedade com os seres humanos, nasceu e cresceu no seio de uma família, necessitado de proteção e de cuidados como uma pessoa comum, numa aldeia sem nenhum atrativo e jamais mencionada no Primeiro Testamento.
A observação de Natanael, que vivia em Caná, próximo da residência de Jesus, revela que Nazaré era tida como sem importância e até desprezada: “De Nazaré pode sair algo de bom?” (Jo 1,46); revela também a vida simples e obscura de Jesus, uma vez que Natanael nunca ouvira falar dele até aquele momento em que Filipe o apresenta.A vida modesta e anônima de Jesus durante todo o tempo de sua infância e juventude oferece sublime valorização não só da dignidade de todo ser humano, mas também da sacralidade do cotidiano.
O Filho de Deus submete-se a tudo o que uma pessoa comum devia fazer para viver e conviver naquele contexto histórico. Assim, todas as pessoas, de qualquer época e de qualquer lugar, podem viver movidas pelo mesmo espírito de Jesus. Todo gesto, por mais simples que seja, pode expressar a marca da divindade. Os Evangelhos oferecem sinais que dão conta dos valores pelos quais se orientou Jesus durante sua vida oculta, “crescendo em sabedoria, tamanho e graça diante de Deus e das pessoas” (Lc 1,52).
Convivendo no meio de um povo marginalizado, viu a opressão política e religiosa a que os galileus eram submetidos, ouviu seus gritos de aflição, conheceu seus sofrimentos (cf. Ex 3,7). Como muitos cidadãos da época, Jesus podia aderir a movimentos de oposição violenta, como os zelotes, refugiar-se no deserto, como os essênios, fazer parte do sistema religioso oficial, como os saduceus e os fariseus, ou escolher outro caminho que lhe proporcionasse prestígio social. Jesus, porém, rompendo com o poder em sua tríplice dimensão: econômica, política e religiosa (cf. Lc 4,1-13), assume a causa de libertação dos pobres, dos presos, dos cegos e dos oprimidos (cf. Lc 4,14-21): quatro categorias sociais sinalizando a totalidade das pessoas excluídas.
É o início de uma grande caminhada na qual Jesus demonstra seu afastamento das instâncias detentoras do poder, cujos agentes o vigiam, o perseguem e o ameaçam até condená-lo à morte. Nada, porém, o afasta do serviço assumido com convicção junto aos empobrecidos, abraçando a misericórdia como princípio orientador de seus ensinamentos e de sua prática. Por isso, não se submete ao sistema legalista judaico nem satisfaz as expectativas populares de um messianismo triunfalista.
Presença solidária e libertadora Os relatos evangélicos ilustram, muitas vezes com detalhes, a postura solidária e misericordiosa de Jesus de Nazaré. Movimenta-se com seus discípulos como peregrino portador da graça de vida e de salvação para todos; aproveita os espaços e os momentos, tornando-os propícios para a propagação da proposta do Reino de Deus, de amor, justiça e paz.
Nas sinagogas A primeira ação de libertação de Jesus, conforme o Evangelho de Marcos (1,21-28), acontece na sinagoga de Cafarnaum, local que ele deve ter frequentado desde jovem. Portanto, conhecia muito bem o conteúdo dos ensinamentos dos escribas e as consequências na vida do povo. As regras do sistema religioso de pureza mantinham a pessoa sob a pressão de obrigatoriedade como forma de pertença ao povo santo de Deus. A maioria sentia-se excluída por impossibilidade de cumpri-las. Aquele ser humano sem nome, atormentado por um espírito impuro, é a figura representativa de todos os que eram considerados impuros: doentes, paralíticos, estrangeiros, mulheres, pobres…